Por Daniel Bertorelli
30 de Janeiro de 2023
Outro dia ouvi uma pessoa pedindo desculpas ao jornalista Allan dos Santos. O pedido inesperado e inusitado veio de um participante em uma sala de bate-papo no Spaces, uma ferramenta do "agora" mais democrático Twitter. O mea culpa veio de um ilustre desconhecido que percebeu a importância da constante vigilância e defesa implacável da liberdade dos outros, não apenas a sua própria. Ele ponderou como é possível tanta gente, e por tanto tempo, manter-se alheia ao sofrimento de um pai que não vê a família por quase três anos? De um cidadão que não pode voltar ao seu país ou viajar a qualquer outro por ter sua integridade física ameaçada por agentes do estado e seu passaporte cancelado sem ter cometido crime algum? Um amigo em comum faz piada com a desgraça: “Quando Allan adentrou atrás das linhas inimigas no território da perseguição e censura, aquilo lá ainda era tudo mato”.
Aos desavisados, Allan dos Santos teve sua empresa de comunicação "Terça Livre" destruída da noite para o dia, e para muitos, Allan simplesmente sumiu do mapa, como aqueles aviões que desaparecem do radar no Triângulo das Bermudas e ninguém sabe dar conta do que aconteceu. Para uns poucos, houve uma certa indignação, mas essa geralmente dura pouco pois a vida continua e qualquer coisa que não atinja nossas vidas diretamente cai na categoria “cada um com seus ‘pobrema’”. Mas uma hora a ficha cai, como caiu para o amigo citado acima na conversa do Twitter, e o que parecia o problema dos outros na verdade é de todos. Para Allan, sua família e as outras oitenta famílias atingidas pelo bloqueio das contas bancárias do Terça Livre e a interrupção de suas atividades, restou em última instância o esquecimento.
As tentativas para destruir Allan seguiram a mesma cartilha que já havia sido utilizada com o professor Olavo de Carvalho: assassinato de reputação, cerceamento de meios de sustento de forma direta conspirando para que fosse demitido de qualquer jornal ou revista, derrubada de seus canais em redes sociais e do site de sua empresa, ou de forma indireta através de intimidação, coação ou perseguição a quem quer que ousasse apoiá-lo publicamente. Olavo reinventou o jogo, fundou seu Curso Online de Filosofia e seus frutos se espalham pelo mundo com alcance e velocidade maiores que sementes de dente-de-leão dançando ao sabor do vento. O tiro saiu pela culatra. Olavo não foi apagado. Ao contrário, esculpiu de forma indelével seu nome na História. Olavo venceu.
Esse assunto me lembrou uma cena do filme “300”, que conta a história da luta entre o rei espartano Leônidas e seus trezentos soldados contra as milhares de tropas do persa Xerxes. Em determinado ponto da narrativa, Leônidas se recusa a dobrar os joelhos e a submeter-se aos caprichos do persa. Xerxes ameaça Leônidas: além de matá-lo, a sua família e a seus soldados, apagaria o nome do espartano dos livros de história, para que o mundo nem mesmo soubesse que ele jamais tivesse existido. Como dizia o líder comunista Milton Temer: “Do Olavo de Carvalho não se fala”.
Com o Allan dos Santos não foi diferente: sem meios de sustento e de comunicar-se com sua base de clientes, fãs e seguidores, ele foi enviado para uma espécie de "gullag digital", a versão moderna da "Sibéria do Esquecimento" a qual Leonel Brizola se referia ao ter sido banido dos noticiários pelo magnata das comunicações Roberto Marinho, um personagem da vida real que talvez despertasse inveja ao próprio Charles Foster Kane da ficção.
Mas o gênio saiu da garrafa com o desenvolvimento da internet e o que antes eram poucas avenidas de mão única controlando e distribuindo apenas a informação que era conveniente à manutenção do status quo, agora são milhares de estradas de mão dupla com uma capilaridade instantânea e global. O Terça Livre continua bloqueado no Brasil, é indiscutível que a gullag digital ainda existe. Mas para toda ação há uma reação. Novas vias são encontradas, como se a liberdade agora reagisse como a hidra mitológica: corta-se uma cabeça, nasce outra lugar daquela.
Em tempos mais “civilizados”, quando uma caneta de fato tem mais poder que uma espada, a história se repete. No lugar de Xerxes, temos agora um outro careca que atende pelo nome de “Xande"; no papel do destemido Leônidas entra em cena uma versão mais magrinha, convenhamos, mas igualmente barbudo, corajoso e sem papas na língua. Seu nome é Allan dos Santos. Ao invés de trezentos espartanos, Allan conta com uma meia dúzia de fiéis amigos e com algumas dezenas, talvez centenas de apoiadores, que vencendo o arame farpado e o campo minado colocado entre ele e o público ainda conseguem fazer doações ou assinar os cursos que o Terça Livre oferece, agora à partir do exílio nos Estados Unidos. A vida é dura e sem luxos, sua filha continua doente, sua família continua longe e sobrevivendo na medida do possível, mas enquanto existirem pessoas com coragem suficiente para alinharem-se ombro a ombro com um cara comum como Allan para defender a liberdade nesse remake mundano da Batalha das Termópilas, ainda há esperança.
No filme, Xerxes falha em seus objetivos. O destino de Xande também é a derrota. Para quem ainda não percebeu, a caneta de Allan é mais poderosa que a de Xande, daí a resiliência do primeiro e o horror revelado nas atitudes arbitrárias do segundo. O careca possui o que se convencionou chamar de poder posicional, ou seja, seu poder vem de sua posição. Uma vez fora de seu posto burocrático, nem a prostituta rodando bolsinha na esquina de sua rua tem a obrigação ou o interesse em ouvi-lo, quiçá cumprir suas ordens. É bem verdade que enquanto sentado em seu trono e protegido por sua capa preta, o que não falta são putas para aplaudi-lo e obedecê-lo. Mas é um tigre de papel, basta uma lança de Leônidas pegando de raspão em sua face para provar aos demais que ele sangra e que não é um deus. Allan possui um outro tipo de poder, que podemos chamar de inter-pessoal. Ele é o que é. E milhares de pessoas conectam-se diariamente de livre e expontânea vontade para ouvir sua voz ecoando pela escuridão que a censura impõe aos brasileiros. Allan nunca parou de falar, nunca desistiu de lutar. E ele continua plantado na entrada da caverna da alegoria de Platão, chamando as pessoas à luz, agora mais uma vez com o megafone do Twitter em mãos.
O Brasil e o mundo vivem tempos estranhos, onde ficção e realidade se misturam em uma dança surrealista e às vezes diabólica. Nem o mais criativo escritor ou diretor de cinema poderiam conceber na ficção o que anda acontecendo na vida real. Oremos e vigiemos, para que daqui a algum tempo não tenhamos que pedir desculpas a mais Allans, Marias, Josés que sumiram sem deixar rastro. Ahn! Um último grito da porta da caverna, para quem ainda está perdido no escuro e procurando uma saída: sabe aqueles aviões que desapareceram no Triângulo das Bermudas lá no início desse texto? Pois é, um deles reapareceu no radar, o prefixo é TL 2023, e seu piloto é Allan dos Santos.