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Gustavo Corção caiu em profundo esquecimento após uma forte campanha de difamação da esquerda e com complacência dos militares. O motivo é simples. Após trabalhar na Companhia Telefônica Brasileira (CTB), onde teve estreita amizade com Carlos Lacerda, um ex-esquerdista como ele, torna-se um dos responsáveis, juntamente com Alceu Amoroso Lima, por sua conversão ao catolicismo. Corção, a convite de Lacerda, torna-se colaborador no jornal carioca Tribuna da Imprensa, destacando-se como grande polemista. A direita tinha um jornal com dois grandes escritores que conheciam a esquerda melhor que ninguém. Corção lança, em 1950, o romance Lições de abismo, premiado pela ONU para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) em 1955, sendo traduzido para vários idiomas. O colunista passa, então, a ser um escritor renomado. Como não podiam vencê-lo no debate, os esquerdistas difamaram-no o mais que puderam, a ponto de seu nome não ser tão conhecido assim por essa Nova Direita que quando muito, sabe quem é Enéas Carneiro. Pesquisando sobre Corção nos jornais, passei os olhos no seguinte texto do Estadão publicado em junho do ano passado:
Em sua crônica “E, por toda a semana, o artigo de Corção começou a badalar” (em O Óbvio Ulultante), Nelson Rodrigues relata a perplexidade de um seu amigo, “uma flor das esquerdas”, com certo artigo em que Gustavo Corção tratava ternamente do filho que fora enviado, à época, como representante do Brasil ao Vietnã. O homem estava perplexo porque “imaginava que, se o Corção passasse a mão pela face, havia de sentir a própria hediondez. Nunca lhe ocorrera que aquela besta-fera pudesse ter costumes, usos, gestos, como outro qualquer”.
É difícil conter o espanto ao ler o texto de Fabrício Tavares de Moraes em ‘Direita e Esquerda na Literatura’ (Parte I) – O processo da História. Moraes – esse nome parece Palpatine para mim – afirma, sem qualquer vergonha, que Nelson Rodrigues chama Corção de “reacionário“, colocando na pena de Nelson o seguinte trecho da obra “Óbvio Ululante”:
Ao que parece, a humanidade do escritor católico e (usando os termos de Nelson) reacionário – seus outros aspectos e cuidados que não as opiniões políticas – jamais havia sido cogitada pelo companheiro de Nelson.
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Um leitor desavisado ou que desconhece a obra de Nelson pensa que ele chama Corção de reacionário, visto estar subtraída no texto do Estadão as aspas usadas no livro. Nelson não teria problema em chamar a si mesmo de reacionário, palavrão evitado por muitos até hoje. Pelo contrário, Nelson, em uma clara tentativa de não se deixar abater pelo enquadramento da esquerda, chegou a intitular seu último livro assim. Nas famosas páginas amarelas da VEJA, respondeu ao jornalista que o questionou ser ele um reacionário: “Na televisão, sempre que me lembro, eu digo que sou reacionário, só pra chatear.” Vejamos o que diz o trecho do livro sem os recortes desse tal de Moraes, o qual nunca foi advogado da Transcooper, mas se quisesse pararia no STF facilmente:O assombro do meu amigo tinha a sua lógica. Durante anos, criara, e recriara, dia após dia, uma imagem hedionda do “reacionário”. Ele imaginava que, se o Corção passasse a mão pela face, havia de sentir a própria hediondez. Nunca lhe ocorrera que aquela besta-fera pudesse ter costumes, usos, gestos, como outro qualquer. Impossível um Corção tomando cafezinho ali na esquina; inadmissível uma gargalhada do Corção, ou um assovio do Corção. E aquele Corção pai, simplesmente pai, e simplesmente terno, e simplesmente infeliz, e simplesmente órfão do próprio filho, contrariava toda uma imagem feita de palavrões de insultos, de baba.
O colunista do Estadão, entre um malabarismo e outro, omite o que Nelson conclui sobre Gustavo Corção: tudo em Corção é amor. E o escriba de Lúcifer, o pai da mentira, faz issona empreitada fracassada de apontar para um ambiente saudável entre pessoas, pasmem, de opiniões políticas divergentes. Sou pago para ler mentirosos. Não pude parar a leitura e continuei.
Nos parágrafos seguintes, lamenta que a obra Fome de Knut Hamsun é lembrada em associação à sua exaltação ao nacional-socialismo, ou seja, um novelista nazista. A ingenuidade evidente é a seguinte: ele quer fazer com que um autor e/ou sua obra, valiosa por seu conteúdo estético e até a genuína experiência transmitida pelas palavras, seja, de algum modo, separada de suas idéias políticas. Incapaz de observar o que qualquer pessoa madura percebe ao se deparar com um canalha profissional, não vê – ou não deseja ver – o que certa vez descreveu Olavo de Carvalho que quando um discurso é errado no seu conteúdo explícito mas tem qualidades estéticas, isso mostra que a experiência de fundo que o inspira é genuína, só falsificada no percurso da representação direta à transmutação em “idéias”.
Sei que sou pago para ler essa turminha do mainstream, mas quando menciona Mario Vargas Llosa e descreve que “é desdenhado por parte da esquerda, não sem certa afetação, devido aos seus posicionamentos à direita“, omite que o vencedor do prêmio Nobel de literatura é odiado pela esquerda porque a deixou. Precisei parar a leitura para poupar meu estômago. Mario Vargas Llosa apoiou Fidel e o comunismo na América Latina, como muitos escritores latino-americanos, mas depois acordou. Esquecer-se de algumas coisas ou omitir outras ao narrar fatos é comum aos mortais, mas adulterar autoria de adjetivos, omitir a causa de desafetos e falar tanta bobagem com ares de intelectual não é algo que suporto por mais do que uns minutos.
O artigo de Nelson, utilizado pelo Moraes do Estadão, foi publicado em O Globo em março de 1968. Imaginar o outro como um espelho da própria sordidez não é algo recente e merece recordação. Nelson escreveu:
“Mas, vejam toda a operação psicológica do meu amigo. A princípio, não entendera uma palavra, tão desconhecido, tão estrangeiro, tão alienado parecia aquele Corção vergado, sofrido, perdidamente solitário. Só depois é que, limpando a figura dos palavrões, dos ultrajes, das calúnias, é que o freguês do Antonio’s pôde chegar à luz última e verdadeira do inimigo. Por fim, quem estava infeliz, na volta do Estádio Mário Filho, era o membro da “festiva”. A partir daquele momento, os seus palavrões soariam falsos aos próprios ouvidos. O meu amigo estava comovido e, pior, furioso com a própria comoção. E, então, chegou a minha vez. Não me lembro de tudo o que disse de Gustavo e de Rogério. O esquerdista ouvia só, numa desesperada impotência para negar a imagem que eu ia elaborando de Corção. Expliquei-lhe que tudo em Corção é amor; poucas pessoas conheço com tanta vocação, tanto destino, para o amor. O que parece ódio, nos seus escritos, é ainda amor. Amor que assume a forma das grandes e generosas procelas. Bate forte, muitas vezes. Mas sempre por amor. Está fatalmente ao lado da pessoa e contra a antipessoa. É a luta que o apaixona. Todos os dias, lá vai ele atirar o seu dardo contra as hordas da antipessoa. Eis o que eu repeti para o meu amigo das esquerdas: — o Corção tem um coração atormentado e puro de menino. Quem o sabe ler, percebe em todos os seus escritos o pai de Rogério, sempre o pai de Rogério, querendo salvar milhões de filhos, eternamente.”
A memória seletiva dessa trupe é asquerosa. É o apogeu da vigarice. Nelson estava certo: “Pode parecer uma verdade exagerada, violentada, mas eu diria o seguinte: — no Brasil, a glória está mais no insulto do que no elogio. Se não me entendem, paciência”.